Os exemplos de luta histórica dos negros no Brasil – tais como, por exemplo, o abolicionismo, as irmandades religiosas, ou mesmo o Teatro Experimental do Negro – mostram que a esquerda nem sempre foi porta-voz e condutora de tais iniciativas. A esquerda e os movimentos negros se uniram, profunda e definitivamente, sobretudo a partir dos anos 1960. Antes disso, o enfrentamento era diverso e, é bom que se diga, muito mais criativo. Baseava-se, como afirmei acima, muito mais numa ética de superação do que numa sanha por reparação.

O resultado dessa apropriação é, obviamente, o enfraquecimento das reivindicações específicas de cada grupo em favor da agenda e dos objetivos partidários e ideológicos das esquerdas. Como bem o disse Abdias Nascimento: “A esquerda é cega, surda e muda no que se refere aos problemas específicos do negro, e despreza sua tradição cultural. (...) Para eles também, ‘todos são iguais perante a lei’... do proletariado. Pobre de quem quiser ser diferente”! Mesmo que, ao longo do tempo, movimentos negros de esquerda, em reação às críticas, tenham tentado contemporizar suas demandas às ideologias socialistas e comunistas, isso não é feito sem o sacrifício de sua autonomia e sem o risco de sucumbir a utopias (ou seja, a perda do senso prático).

Quando a luta negra se aliou aos (e se alienou nos) movimentos de esquerda revolucionários e anticapitalistas, viu diluídas suas demandas específicas numa massa agrupada pelos interesses dos movimentos marxistas, socialistas e comunistas

Os movimentos revolucionários negros, como os Panteras Negras, o feminismo negro de Angela Davis e outras iniciativas, são todos, por definição, anticapitalistas. Aí fica a pergunta: qual a chance de esses movimentos prosperarem no ocidente capitalista? Qual a chance de uma superação do capitalismo ser levada a cabo sem os prejuízos históricos que os grupos mais vulneráveis sofrem nesse processo? O professor Carlos Moore, por exemplo, fala disso, em seu O marxismo e a questão racial, em relação à Revolução Cubana; os presos políticos eram, em sua grande maioria, negros, e os altos escalões do governo revolucionário eram todos formados por brancos. Lutar por inclusão não significa que esta só é possível em regimes baseados em utopias igualitárias.

Mas esse não é meu ponto aqui. Na verdade, meu questionamento central está baseado numa pesquisa recente que apontou o nível de percepção de desigualdade nas sociedades. A pesquisa, realizada pelo Instituto Ipsos, aponta que os grupos LGBT são os que mais sofrem discriminação no Brasil e no mundo, seguidos pelas mulheres e pelas pessoas com deficiência. Em quarto lugar, tecnicamente empatadas com o quinto (pessoas trans), aparecem as minorias étnicas. No Brasil, especificamente, 40% da população considera que os grupos LGBT são mais discriminados que os negros (30%).

Aí, nobre leitor, minha pergunta é: como um país que viveu e sustentou um regime escravista por quase 350 anos, que adotou em larga escala teorias eugenistas como política de Estado, e que criou uma profunda cultura de subalternização dos negros que é, ainda hoje, em grande medida, responsável pela permanência de pessoas negras nos extratos socioeconômicos mais baixos, percebe mais a discriminação de grupos LGBT que a discriminação racial? Minha hipótese é: os grupos LGBT sempre foram política e economicamente mais poderosos que os movimentos negros, sempre tiveram apoio midiático e são estrategicamente mais coesos. Recentemente, inclusive, conseguiram emplacar uma lei anti-homofobia embutida na Lei Antirracismo – o que considero um erro brutal, não porque pense que a homofobia não deva ser criminalizada, mas porque, como eu disse, tais discriminações têm naturezas específicas e devem ser tratadas especificamente. Mas esse caminho seria óbvio, uma vez que, sob a tutela da esquerda, todas as discriminações se equivalem, e se, num primeiro momento, só se importavam com o conceito de classe, mais recentemente, em reação às críticas, emplacaram a ideia de que raça e gênero também são importantes, mas não podem ser analisadas separadamente – a tal da interseccionalidade, oriunda do feminismo negro, declaradamente de esquerda e anticapitalista.

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O leitor crítico pode perguntar: “OK, mas o que a direita fez pelos negros durante todos esses anos?” Bem, aí teríamos de pensar, conceitualmente, o que é a direita; quando ela, de fato, ocupou o poder; e se, quando estava nele, contribuiu ou obstruiu o avanço da pauta antirracista no Brasil (falei um pouco disso no epísódio de meu podcast, o Noir, nessa sermana). Mas posso lhe assegurar que a posição conservadora quase nunca é partidária, é mais uma disposição cultural, uma tradição que anima (de dar alma) aqueles por ela conduzida.

Entretanto, é correto dizer que a luta abolicionista pode ser considerada, se não um movimento de direita, um movimento antirrevolucionário. Todas as leis abolicionistas foram sancionadas por gabinetes conservadores: a Lei Eusébio de Queiroz (1850), homônima ao ministro da Justiça, do Partido Conservador, que a conduziu; a Lei do Ventre Livre (1871), capitaneada por José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, também do Partido Conservador; a Lei dos Sexagenários (1885), aprovada por João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, igualmente do Partido Conservador; e, por fim, a Lei Áurea, assinada pela católica dona Isabel, a princesa imperial, teve como responsável pela aprovação o ministro Rodrigo Augusto da Silva – e já não preciso dizer a qual partido ele pertencia. Sem contar que as mais expressivas iniciativas dos movimentos negros organizados, na primeira metade do século 20, foram conservadoras e animadas por um senso de tradição e religiosidade que sempre fez parte da imaginação moral da população negra brasileira. Só a falsificação histórica pode negar tais fatos.

Ou seja, quando a luta negra se aliou aos (e se alienou nos) movimentos de esquerda revolucionários e anticapitalistas, viu diluídas suas demandas específicas numa massa agrupada pelos interesses dos movimentos marxistas, socialistas e comunistas. Com isso, nesse imbróglio, os movimentos politicamente mais poderosos têm mais capacidade de serem percebidos e fazerem suas pautas avançarem, inclusive usando como hospedeiro os movimentos negros, que já não conseguem falar em antirracismo sem falar em LGBTfobia. Mas, apesar de terem perdido espaço e relevância na percepção da sociedade, provavelmente vão culpar o racismo por isso e permanecerem na mesma. Estão satisfeitos?